Alexandre Wunderlich

I. A hipótese

Desde o início do processo de pandemia da COVID-19, as audiências judiciais na modalidade “telepresencial” têm sido prática comum. A ideia é dar efetividade ao Poder Judiciário, ainda que em tempo de alta dificuldade, seguindo o rito análogo ao adotado nas solenidades presenciais.   

Imagine-se, apenas por hipótese, a seguinte “cena judicial”: uma vez aberta a solenidade, antes mesmo do início dos trabalhos, a imagem do Juiz não aparece no vídeo, pois ele está com a sua câmera do seu computador funcional desligada. Achou por bem, figurar apenas com o seu “retrato” no “perfil”. O advogado invoca a questão de “urbanidade” e postula a abertura da câmara. O Magistrado indefere o pedido, sob a alegação de que não considerava falta de urbanidade a realização do ato judicial com a câmera desligada, bem como entende que a sua foto é suficientemente apresentável para realização do ato. Feito o imbróglio, o ato é encerrado, sendo determinada a remoção do advogado da sala virtual. Em resumo, dentre outras determinações que não importam aqui, eis a conduta do Juiz: ordenou que o ato fosse realizado com a câmera “fechada”, mostrando apenas a sua “fotografia” no perfil” e, depois, discutiu com o advogado e encerrou a audiência sem as consignações postuladas, determinando o adiamento desmotivado e por tempo indeterminado, em prejuízo ao direito do jurisdicionado.

A situação é grave para a parte prejudicada, para o Poder Judiciário e para a Advocacia em geral, o que impõe uma reflexão sobre violação de deveres funcionais.

II. O direito ao Juiz – ausência da imagem do Juiz em tempo real 

São dois planos de análise:  Primeiro, é necessário avaliar a pertinência da condução do ato virtual pelo Juiz que preside a audiência com sua câmera fechada, sem a imagem em tempo real e aparecendo apenas sua imagem fixa (fotografia) – e se tal conduta representa violação da regra de urbanidade, rompendo com a solenidade do ato e o imediatismo da atuação virtual. Segundo, há que se verificar se é um direito do jurisdicionado e de seu advogado o acesso à imagem instantânea do Juiz, em razão de urbanidade e paridade e, fundamentalmente, como forma de controle da legalidade do ato, confirmando se o Juiz está fisicamente presente e com atenção ao ato que preside, com imparcialidade – é, sobretudo, um juízo de fiabilidade.

Como regra, a audiência é um ato presencial solene em que os jurisdicionados comparecem perante o Juízo-Estado, portando-se com urbanidade, restando os atores sujeitos aos mesmos ditames legais. Em exceção, sobretudo em tempos pandêmicos, há normativas dos Tribunais que possibilitam a realização de audiência na modalidade “telepresencial”. Embora a audiência seja adequada ao regime de funcionamento diferenciado do Poder Judiciário em razão da pandemia, é evidente que devem ser preservadas e asseguradas todas as garantias a que as partes fazem jus. Não por outra razão, normas específicas foram emitidas para a regulamentação1 das atividades, de acordo com a necessidade de isolamento social.

É lógico que os elementos que intervêm na regular forma de prestação jurisdicional, seja a tecnologia, o contexto de pandemia ou, ainda, a combinação dos fatores, devem garantir que as adaptações resguardem a segurança jurídica, o devido processo legal e a sua razoável duração, para além das balizas irrenunciáveis da urbanidade, do decoro e do caráter formal dos atos, que devem ser observadas e salvaguardadasjustamente pela Autoridade Judicial.

III. Algumas obviedades

É evidente que o Magistrado é quem deve zelar pelo regular andamento da ação e pela devida realização dos atos jurídicos, ainda que no modelo à distância, com a maior transparência possível. A questão é que a condução da audiência com a câmera filmadora fechada gera visível insegurança jurídica e desaproxima ainda mais o ato virtual da essência do ato presencial – a pessoalidade. 

É claro que, se no ato presencial é imprescindível a “presença física” do Magistrado, não há razão para que a sua presença transmitida em tempo real no formato telepresencial seja dispensada e, mais do que isso, seja expressamente negada às partes, como ocorreu na hipótese sugerida neste pequeno artigo. 

Ademais, para além das regras de “urbanidade” e de “cordialidade”, intrínsecas aos atos judiciais e abarcadas pelos deveres funcionais dos Magistrados, a realização de audiência telepresencial, com a presença da Autoridade Judicial transmitida por vídeo, representa a consagração da “paridade” de tratamento e da “igualdade” entre os atores do processo, que são expressamente instruídos a manterem áudio e seus câmeras de vídeo em funcionamento. O trato com “igualdade” e “dignidade” é, inclusive, previsão expressa do art. 6º do Estatuto da OAB.4

Logo, sequer parece crível que um Juiz, que representa o Estado no ato, possa determinar a realização do ato judicial apenas com a sua voz e o seu retrato fixo. A hipótese, portanto, sequer deve ocorrer na prática – é meramente imaginativa. Contudo, vivemos tempos estranhos e, se por acaso, algum Magistrado inovar, a presente reflexão pode servir de auxílio e, quiçá, jogar luz sobre o tema.

O que se busca é a realização do óbvio:  a “urbanidade” do ato solene e formal, a “paridade” e a possibilidade de controle da “legalidade” da audiência, para que seja garantido um julgamento eticamente justo, que enseja a presença de um Julgador competente e imparcial, configurando direito fundamental o acesso ao Judiciário – que compreende o dever do Juiz de se apresentar perante o jurisdicionado, justamente para que possa ser fiscalizado, bem como o direito deste de encontrá-lo presente.

Portanto, não é “favor” pedir que o Juiz esteja presente no ato, ainda que por transmissão em tempo real. Aliás, é conduta esperada da Autoridade que o preside, em cumprimento aos deveres que lhe são incumbidos e em observância às garantias que deve assegurar às partes, especialmente aquelas que regem a transparência dos atos e a imparcialidade dos julgadores, sob pena de inviabilizar a devida prestação de um serviço público e, ainda, o próprio acesso à justiça.5


Notas de Rodapé

1 Art. 7º da Resolução 354 de 19/11/20, CNJ: “A audiência telepresencial e a participação por videoconferência em audiência ou sessão observará as seguintes regras: I – as oitivas telepresenciais ou por videoconferência serão equiparadas às presenciais para todos os fins legais, asseguradas a publicidade dos atos praticados e as prerrogativas processuais de advogados, membros do Ministério Público, defensores públicos, partes e testemunhas; (…) VI – a participação em audiência telepresencial ou por videoconferência exige que as partes e demais participantes sigam a mesma liturgia dos atos processuais presenciais, inclusive quanto às vestimentas (…).” No CPC, o art. 195: “O registro de ato processual eletrônico deverá ser feito em padrões abertos, que atenderão aos requisitos de autenticidade, integridade, temporalidade, não repúdio, conservação e, nos casos que tramitem em segredo de justiça, confidencialidade, observada a infraestrutura de chaves públicas unificada nacionalmente, nos termos da lei”. A Resolução 329/20 do CNJ: “Art. 3º, § 3º A realização de audiência ou ato processual por videoconferência requer a transmissão de sons e imagens em tempo real, permitindo a interação entre o magistrado, as partes e os demais participantes. Art. 4º, § 1º Os atos realizados por videoconferência deverão observar a máxima equivalência com os atos realizados presencialmente ou em meio físico.”

2 Voto do Min. Sebastião Reis Júnior, no HC 590.140/MG, 6ª Turma do STJ: “Todas as precauções devidas devem ser tomadas na origem e o ato deve ser síncrono. Quer dizer, a audiência deve ocorrer em tempo real, permitindo a interação entre o magistrado, as partes e os demais participantes. E, para evitar que haja máculas aos princípios constitucionais relacionados à garantia de ampla defesa, o Magistrado deve observar os parâmetros dados pelo Conselho Nacional de Justiça (…). Com efeito, é preciso viabilizar a continuidade da prestação jurisdicional e, ao mesmo tempo, garantir a preservação da saúde de magistrados, agentes públicos, advogados, além de usuários do sistema de justiça em geral. Isso sem esquecer, obviamente, tal como afirmado pelo Ministro Toffoli, que as audiências devem buscar a máxima equivalência com os atos realizados presencialmente, respeitando a garantia da ampla defesa e o contraditório, a igualdade na relação processual, a presunção de inocência, a proteção da intimidade e vida privada, sobretudo em caso de segredo de justiça, a efetiva participação do réu na integralidade da audiência ou ato processual e a segurança da informação e da conexão.”

3 Art. 35 da Lei Complementar 35/1979 (LOMAN), art. 360, I e IV do CPC: Art. 35 – São deveres do magistrado: IV – tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. (…) VIII – manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.  Art. 360. O juiz exerce o poder de polícia, incumbindo-lhe: I – manter a ordem e o decoro na audiência; (…) IV – tratar com urbanidade as partes, os advogados, os membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e qualquer pessoa que participe do processo (…).

4 Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.

5 Ato n. 4/GCGJT pela Corregedoria-geral do Trabalho, consolidando a realização de sessões e audiências telepresenciais “por meio do uso de vídeo e imagem condizentes com a formalidade do ato”, cujo art. 2º determina expressamente a transmissão de vídeo em tempo real: “A transmissão de imagem dos juízes e desembargadores durante as audiências e sessões de julgamento telepresenciais deverá ocorrer durante todo o ato, sendo vedada sua interrupção sem justificativa plausível.”